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Foto: Canva

A liberdade de expressão no mundo dos games

Qual seria a melhor estratégia para lidar com conteúdos nocivos, violentos e prejudiciais por vezes trazidos pelos vídeo-games?

O ano de 2019 trouxe consigo inúmeras discussões acerca do tema “liberdade de expressão”, envolvendo desde a condenação de um comediante por sua manifestação por meio das redes sociais a ordens judiciais que restringiram o acesso a informações alegadamente falsas. Neste contexto, até mesmo o mundo dos vídeo-games foi palco para o debate.

 

Há alguns meses, por exemplo, um jogo que alegadamente contém 500 (quinhentas) imagens e mais de 7.000 (sete mil) palavras permitindo ao jogador que assedie verbalmente, mate e pratique estupro contra mulheres, enquanto progride na história, foi disponibilizado pela Steam, importante plataforma no mundo dos games. Seu conteúdo apresenta também violência, assédio sexual, sexo não consensual, linguagem obscena, necrofilia e incesto.

 

No passado, a Valve Corporation, responsável pela Steam, controlava os conteúdos, decidindo de forma unilateral quais jogos eram aptos a serem disponibilizados em sua plataforma de acordo com seus próprios termos de uso. Contudo, após uma série de questionamentos a respeito das métricas e critérios adotados pela empresa, em 06 de junho de 2018, a Steam passou a disponibilizar todos os conteúdos em sua plataforma sem discriminação, atuando apenas em casos que alcançassem uma forte repercussão negativa.

E foi o que ocorreu com o jogo em questão, que foi definitivamente excluído da Steam após a forte reação negativa da própria comunidade e da sociedade em geral, que entendeu que um jogo cujo objetivo estava tão fortemente relacionado à prática, pelo jogador, de sexo forçado com mulheres não era adequado para ser disponibilizado na plataforma.

 

Contudo, a desenvolvedora do jogo banido apresentou oposição à decisão da Valve, na medida em que alega que teria apresentado todos os avisos sobre os assuntos abordados, de forma que caberia àqueles que não se interessam pela narrativa, absterem-se de fazer uso do jogo, de forma que a exclusão do conteúdo configuraria, ao seu ver, violação ao direito de liberdade de expressão.

De fato, embora as narrativas trazidas pelos jogos sejam similares às constantes em livros e filmes, discussões acerca dos temas abordados pelos video-games costumam ser mais acaloradas na medida em que o jogador não é apenas um participante passivo da história, mas um agente ativo, que controla seu personagem e a narrativa, muitas vezes optando por agir de forma criminosa no mundo virtual, como assaltando bancos ou praticando assassinatos.

 

Neste contexto, as narrativas violentas, gravosas e agressivas, por vezes retratadas no mundo dos games, causam maior preocupação quando se considera que crianças e adolescentes representam uma porcentagem relevante dos jogadores, alcançando quase 40% (quarenta por cento) dos players no Brasil, e, por sua própria natureza, são mais vulneráveis aos conteúdos que acessam, os quais podem interferir em seus desenvolvimentos pessoais e percepção da realidade que os permeia.

Desta forma, nasce o questionamento: qual seria a forma mais adequada de lidar com esses conteúdos, considerando, ainda, que os direitos e interesses das crianças e adolescentes devem ser tutelados pela sociedade e pelo Estado com absoluta prioridade?

 

A Constituição Federal prevê a liberdade de expressão no inciso IX do emblemático artigo 5º, determinando ser “livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”, sendo absolutamente vedada qualquer espécie de censura.

Na qualidade de um conteúdo multimídia, os vídeo-games são instrumentos para a liberdade de expressão, na medida em que a narrativa, o conjunto de áudio e imagem criados pelos desenvolvedores representam inovação criativa e artística, sendo, inclusive, protegidos por direitos autorais, nos termos da Lei nº 9.610/98.

Contudo, é evidente que para que possa usufruir destas proteções, o conteúdo deve ser lícito, ou seja, não implicar na violação de qualquer lei vigente no país, ou direito de terceiros, em especial, crianças e adolescentes, em condição especial de desenvolvimento. 

 

Além disso, é também necessário salientar que o artigo 227 da Constituição Federal expressamente determina que é um dever da sociedade o cuidado, com absoluta prioridade, dos direitos das crianças e dos adolescentes, direcionamento replicado no Estatuto da Criança e do Adolescente.

Neste sentido, oportuno mencionar que em 2018 o Estado Brasileiro, representado pelo Ministério Público, desprendeu esforços para exercer maior controle sobre vídeo-games de natureza ofensiva e/ou violenta, baseando o pedido de abstenção de distribuição, grandemente, nas diretrizes constantes no Estatuto da Criança e do Adolescente.

 

Mais recentemente, após incidente que ficou conhecido como “o massacre de Suzano”, o deputado Júnio Bozella do PSL apresentou o Projeto de Lei nº 1.577/2019, que tem por finalidade criminalizar o desenvolvimento, a importação, a venda, a cessão, o empréstimo, a disponibilização ou o aluguel de aplicativos ou jogos eletrônicos com conteúdo que incite a violência, focando seus esforços na alegada proteção dos jogadores mais jovens, que, segundo o político, seriam mais vulneráveis ao conteúdo violento.

 

Em que pese a Constituição Federal, em seu artigo 220, §2º, vede toda e qualquer hipótese de censura, é necessário refletir sobre todos os obstáculos que se apresentam no que se refere aos cuidados para que a parcela mais jovem da sociedade, naturalmente mais vulnerável, seja prejudicada pelo acesso a conteúdos inapropriados enquanto se encontram em fase de formação.

 

Isso porque a mera classificação etária por parte do Estado, que determina quais jogos são recomendados e adequados para consumo não é suficiente para garantir que os jogadores menores de idade não tenham acesso a jogos que tratem de narrativa madura e, possivelmente, prejudicial ao seu desenvolvimento.

 

Afinal de contas, atualmente, muitos jogos são adquiridos e jogados por meio da Internet, onde a verificação de informações pessoais ou cadastrais não é feita de forma efetiva, o que dificulta a garantia aos direitos dos jovens jogadores, sendo inviável que se sobrecarregue apenas os pais ou representantes legais das crianças e adolescentes a missão de adotar medidas que garantam o acesso a conteúdos adequados e seguros.

 

Neste sentido, ainda que se argumentasse o conflito entre os direitos dos desenvolvedores dos jogos e a segurança das crianças e adolescentes, é necessário reiterar que a Constituição Federal determina que os direitos infantis devem ser garantidos de forma prioritária, o que poderia, em tese, justificar as referidas limitações e cerceamentos.

 

Não suficiente, é também necessário refletir se conteúdos que fazem alusão a um tipo muito específico de violência, voltado exclusivamente contra uma minoria já vulnerável na sociedade poderiam, em princípio, ser, na realidade, enquadrados como apologia à prática criminosa, conduta tipificada pelo caput do artigo 287 do Código Penal.

 

Diante de todo o exposto, verifica-se que assegurar os direitos da criança e do adolescente é um dever de toda a sociedade em regime de prioridade, o que pode, por vezes, justificar a supressão ou limite de outros direitos em prol da parcela mais jovem da população, sendo valioso apontar, ainda, que a natureza de algumas narrativas pode, em tese, configurar o crime de apologia a práticas criminosas, destituindo-se, assim, do seu caráter lícito, e, portanto, passível de controle e, até mesmo, exclusão do mercado de consumo por iniciativa do Estado, caso seja verificado o risco ao desenvolvimento saudável da população jovem brasileira.

Gisele Amorim Zwicker

Guilherme Oschendorf de Freitas

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